domingo, 13 de janeiro de 2013

Sahara, a última colónia (1). O Abandono

2 de novembro de 1975, o Príncipe Juan Carlos em El Aaiún:
"nunca os abandonaremos..."

Diego Camacho López-Escobar, o autor do artigo, é coronel do Exército espanhol, diplomado em Operações Especiais, licenciado em Ciências Políticas e membro da Comissão Diretiva da APPA (Asociación para el Progreso de los Pueblos de África).
Realizou diversas missões de Inteligência e Cooperação na Guiné Equatorial, Costa Rica, Marrocos e França. É co-autor com Fernando J. Muniesa do livro: “La España otorgada” (Anroart Ediciones, 2005). Pertenceu à direção do Centro Superior de Información de la Defensa (CESID) (Serviços Secretos do Estado espanhol). Ver entrevista neste blog.

O saída e o abandono do Sahara foi, para Espanha, a principal causa do seu desprestígio internacional durante o último terço do século XX. Nenhuma potência colonial, depois de 1945, promoveu uma negligência semelhante da sua responsabilidade em relação a uma população colonizada como a que o nosso país fez com os saharauis, que um dia tiveram a nossa nacionalidade e o seu território foi declarado como província espanhola. Passados mais de 35 anos de abandono, os nómadas ainda não conseguiram concluir o processo de autodeterminação, a que segundo a lei internacional têm direito.

Hassan II aproveitou da melhor maneira, nos últimos dias da vida do General Franco, a debilidade que o Estado espanhol apresentava, causada principalmente pela insegurança da sua classe política no momento de assumir o poder e as responsabilidades do Estado. Para os que pertenciam ao regime que então agonizava, tratava-se de o conservar sem perder legitimidade; e para os que chegavam, tratava-se de o tomar sem provocar uma rutura social. A classe política espanhola estava com um olho na sucessão da Chefia de Estado e nos problemas que colocava a articulação de um novo regime político. A Guerra Fria, o Magrebe e o destino dos habitantes do Sahara não estavam entre as suas preocupações mais prementes. Mas, para os EUA, o Sahara vai constituir uma peça essencial para alcançar a estabilidade regional, mas sobretudo o controlo sem sobressaltos do Mediterrâneo.
O Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger
Vernon Walters, Chefe da CIA

A análise geoestratégica que Henry Kissinger e Vernon Walters realizam a partir do Departamento de Estado e da CIA são coincidentes e muito favoráveis para Marrocos nos seus interesses regionais de curto e médio prazo. Espanha, ocupada noutros assuntos de carácter interno, não vai dar à questão a importância que tem e nem sequer vai estar ciente do desgaste internacional que isso lhe irá causar, ao não encontrar uma saída válida capaz de conciliar a legalidade internacional com os interesses que, então, apoia a Casa Branca.

Os elementos que os analistas americanos manipulam para recomendar uma linha de ação são de grande complexidade política pelo risco envolvido na situação regional existente e para defender o seu principal objetivo no sul da Europa, que não é outro que o Estado de Israel. São os seguintes:

1º - Os acontecimentos políticos em Portugal, na sequência da Revolução dos Cravos, abrem uma dúvida quanto ao seu papel na NATO. Isto é, se a abertura à liberdade vai significar apenas isso ou se, pelo contrário, vai significar algo mais, como seria a hipótese no cenário mais perigoso a uma aproximação à URSS. Neste último caso, a operacionalidade futura da base dos Açores estaria em perigo e, em consequência, o controle seguro sobre o Estreito de Gibraltar.

2º - A incerteza provocada pela doença do general Franco em Espanha, aumenta o risco de instabilidade no norte do estreito pela incerta mudança de um regime político que levava quase 40 anos no poder. O sucessor na Chefia do Estado, o Príncipe Juan Carlos, é aceite com grande relutância pelas principais famílias do regime de Franco; é recusado de início pela Esquerda que o apelida de "o breve" devido à sua falta de legitimidade democrática, por ter sido escolhido a dedo pelo ditador, e tão pouco ser aceite pelo seu pai, Don Juan, legítimo sucessor da dinastia da Casa de Bourbon.

3º - A tradicional aspiração da Argélia, firme aliada da URSS, de alcançar a costa do Atlântico para alcançar a hegemonia no Magreb, seria facilitada com a criação de um novo país, entre Marrocos e a Mauritânia que, por ser politicamente dependente de Argel, abriria o desejado corredor para o Oceano Atlântico.

4 °- A riqueza em fosfatos e petróleo que o Sahara possui. Marrocos e os EUA. São os maiores produtores mundiais de fosfatos e a partir do ácido fosfórico pode obter-se urânio. Permitir o acesso a essas reservas estratégicas pela Argélia pressupunha facilitar uma maior penetração da URSS em África.

5º - A debilidade política que atravessa Marrocos. Em 1971, tem lugar um levantamento militar com o assalto ao palácio de Skirat e que tem um saldo de 100 mortos, na sua maioria diplomatas e membros da Corte; e, em 1973, o ministro do Interior, o general Ufkir, encabeça outra intentona para acabar com a vida do rei durante sua viagem de retorno de Paris. Qualquer acontecimento que tivesse lugar na região e fosse desfavorável a Marrocos, no equilíbrio que Rabat mantinha com Argel pela hegemonia no Magreb, poderia ter repercussões negativas para a estabilidade política do trono e aos interesses norte-americanos e franceses.

Todos esses fatores vão convergir na necessidade estratégica de garantir a estabilidade no Mediterrâneo Ocidental, que permita a liberdade de movimento da Sexta Esquadra, peça essencial para manutenção dos interesses dos EUA no Médio Oriente. Estabilidade para a qual se avaliam os riscos que colocariam, por um lado, a instabilidade política existente em Espanha e em Portugal e, por outro, um eventual reforço da Argélia em detrimento de Marrocos. Para Kissinger, a hipótese mais perigosa era que a instabilidade da Península Ibérica acabasse por se materializar e que, simultaneamente, o fortalecimento de Argel desequilibrasse o trono alauita e a correlação de forças existente no Magrebe, permitindo a expansão soviética na região. A decisão dos EUA era sustentada por critérios objetivos e um pragmatismo político em que, como é evidente, se sobrepunham os seus interesses de controlo militar a qualquer consideração de direito internacional.

Tendo em conta a avaliação anterior, a linha de ação que o Secretário de Estado propõe ao presidente Ford é reforçar Marrocos militar e economicamente, com a ajuda da França, para garantir assim a sua estabilidade política interna, a partir da qual pudesse exercer o controlo absoluto da costa atlântica e do Norte  de África, caso a mais perigosa das hipóteses viesse a ocorrer. A partir desse momento, a "Marcha Verde" já só será apenas um problema logístico pois a decisão de a realizar já havia sido tomada como a melhor forma de materializar a linha de ação adotada. Foi organizada por agentes da CIA com o dinheiro do Kuwait, uma vez conseguido que o governo espanhol não coloque problemas. É interessante assinalar que, ao ser questionado pelo seu presidente sobre o conteúdo do parecer do Tribunal Internacional de Haia, Kissinger lhe tenha respondido que o dictamen tinha sido favorável a Marrocos, o que era uma mentira, em relação às duas questões de fundo que tinham sido colocadas ao Tribunal pela Assembleia Geral da ONU e, dessa maneira, o Secretário de Estado contornava o obstáculo que poderiam representar as reservas morais e mentais de um Presidente que teve de substituir Nixon na sequência do escândalo Watergate, e cuja insegurança pessoal era o traço mais marcante do seu caráter.

O maior obstáculo espanhol reside na personalidade do próprio Franco que não é, por princípio, favorável e permitir pressões ou chantagens do vizinho do sul. Quando informado por Arias Navarro, num dos seus momentos de lucidez durante o seu internamento no Hospital Gregorio Marañón, em 1974, chega a ordenar a declaração de guerra a Marrocos. Poucos minutos depois volta de, novo, a entrar em crise e Arias, com a colaboração com de Carro e Solís, não cumprem a ordem do General e apressam-se a seguir as instruções do "amigo americano" para abandonar o Sahara. Anteriormente, o ministro das Relações Exteriores, Cortina Mauri, partidário de resistir à pressão marroquina foi removido da sua responsabilidade em relação a esta matéria, a qual passou a ser assumida pelo ministro do Trabalho Solís Ruiz, que além do seu cargo ministerial estava incumbido também de representar os interesses económicos do Rei de Marrocos em Espanha.

A maior ignomínia da política externa espanhola desde as abdicações de Bayona, por Fernando VII e Carlos IV a favor de Napoleão, teve lugar no palácio de Marraquexe. Pela parte espanhola o ministro da Presidência Carro, por Marrocos Hassan II. Este último só consentiria parar a "Marcha Verde" quando o ministro espanhol acedesse a solicitá-lo através de uma carta cujo texto seria ditada pelo próprio sultão!

O Príncipe Juan Carlos, como chefe de Estado interino, também não tem um papel airoso durante estes dias. Realiza uma viagem relâmpago a El Aaiún, onde convence com facilidade os comandantes militares da firmeza do governo e da necessidade de se manterem firmes. Enquanto negociava com Hassan II — usando os bons ofícios de Vernon Walters — a retirada das tropas espanholas e a anexação da antiga província espanhola pelo reino alauita. A verdade é que, aproveitando a sua influência sobre os militares, o Príncipe faz-lhes acreditar que aquilo que eles desejam é também o que o governo quer, ocultando-lhes a realidade dos factos.

A Marcha Verde

A atitude do Príncipe é motivada pelo quadro estratégico descrito, que é o fator determinante, e a necessidade imperiosa de contar com o apoio norte-americano e francês para tomar posse do trono. Para estes dois países, a estabilidade de Marrocos, em 1975 não era uma questão negociável e, por isso, se Juan Carlos necessitava do apoio internacional para assegurar o poder em Espanha, não poderia seguir outro caminho que não fosse o que ditavam Washington e Paris. É evidente que a solução que favorecia as ambições marroquinas constituía uma violação em toda a linha do espírito e da letra da Carta de São Francisco, que foi o germe do nascimento da ONU, no final da Segunda Guerra Mundial.

A dívida contraída para com os saharauis para assegurar o trono espanhol, tornava claro que as promissórias iriam ser pagas pela nação espanhola, ao longo dos anos, na forma de prestígio internacional.

Se do ponto de vista da práxis política a traição de 1976 pode ser entendida, ainda que não compartilhada; o desprezo dos sucessivos governos espanhóis em continuar a apoiar a pilhagem do Sahara, a violação sistemática dos Direitos Humanos e o incumprimento do Direito Internacional, à custa da nossa reputação, é muito mais difícil de explicar em 2012, uma vez que já não podem ser argumentadas razões geoestratégicas ou de defesa de uma transição. Há apenas uma explicação: a dos interesses pessoais criados ao longo destes anos entre os dois países; o sultão pagando a fatura e muitos espanhóis a receber por trabalharem para ele. O Rei de Espanha, que tem uma dívida para com o povo saharaui, ainda não a pagou, e é, talvez, o maior beneficiário desta situação… e agora não pode atribuir à instabilidade do trono. Espanha não pode ir bem se o seu prestígio é inversamente proporcional ao benefício material que obtém a Coroa em relação ao Marrocos, a longo prazo tão pouco é um bom sinal para a monarquia.

Pelos Acordos de Madrid, a Espanha cedeu a administração do Sahara a Marrocos e à Mauritânia, com o compromisso das novas potências ocupantes organizarem um referendo em que os saharauis pudessem escolher o seu destino. Uma vez abandonado o território pelo nosso país, começou uma guerra de resistência liderada pela Frente Polisário, que impede o controlo territorial efetivo e leva a Mauritânia a abandonar o território, em 1979, que é ocupado por Marrocos. A ONU tomou conhecimento dos acordos, como foi confirmado pelo seu Secretário-Geral, Kurt Waldheim, e os EUA só contemplavam a anexação final por Marrocos, mas sem questão de tempo. Embora nunca tenham reconhecido a mudança da titularidade da administração do território, que continua a recair sobre Espanha.







Diego Camacho López-Escobar, Ver entrevista neste blog.

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