segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Crise entre França e Marrocos (VI): de como a França humilha Mohamed VI




É a escola francesa da diplomacia. No dia em que, finalmente, François Hollande se dignou conceder uma audiência a Mohamed VI o diário ‘Le Monde’ torna público a sua anunciada reportagem sobre a fortuna do sultão marroquino na Suíça. Está agora nas mãos de Mohamed VI dar-se por "enfermo" (desculpa utilizada para cancelar a sua viagem à China,de que nunca mais se ouviu falar) ou ir ver Hollande no mesmo dia em que ‘Le Monde’ publica uma informação extremamente comprometedora para ele.@Desdelatlantico.

Artigo de Carlos Ruiz Miguel, prof. de Direito Constitucional da Universidade de Santiago de Compostela


I. A CRISE FRANCO-MARROQUINA LEVA FRANÇA A DESCOBRIR O VERDADEIRO ROSTO DO MAKHZEN

A crise franco-marroquina, larvar desde a derrota do amigo do Makhzen Nicolas Sarkozy, em maio de 2012, estalou em fevereiro de 2014 quando uma juíza francesa entregou na residência do embaixador marroquino em Paris uma citação para o sinistro chefe da espionagem perseguido por torturas (individuo que, no entanto, foi condecorado pelo governo Rajoy no  outono de 2014).

A partir de então, o Makhzen, descontrolado, multiplicou gestos de extrema hostilidade contra a França que revelaram o verdadeiro rosto do suposto "aliado". O momento crítico, em minha opinião, foi o discurso de Mohamed VI em Abidjan poucos dias depois do estalar da crise. Nesse discurso, referindo-se, sem a citar, à França, Mohamed VI lançou-lhe um desafio em toda a regra:

Já não há terrenos conquistados nem coutos privados. Seria uma ilusão crer no contrário. Seria igualmente, enganarem-se acreditar que há projetos grandes e pequenos
(...)
África é um grande continente, pelas suas forças vivas, seus recursos e suas potencialidades. Ela deve cuidar de si mesma, não é mais um continente colonizado. África deve confiar na própria África. Requer menos ajuda e mais relacionamentos mutuamente benéficos.
(...)
África não deve ser refém do seu passado

Mohamed VI disse estas palavras em Abidjan, a capital da Costa do Marfim, um dos países emblemáticos da "FranceAfrique". Escusado será dizer que, quando disse: "África deve contar com a África" estava a dizer "a África negra francófona deve confiar em Marrocos".

Em minha opinião, o discurso de Abdijan marcou um antes e um depois nas relações de França e Marrocos. A partir de então ficou claro que Mohamed VI não quer continuar a ser o que Marrocos foi desde a sua independência, o peão de França em África, na "FranceAfrique". Ao contrário, o Makhzen teve a audácia de se querer substituir a França na África Ocidental francófona. Palavras fortes.

Todo o que veio depois, incluindo a ausência de Marrocos na manifestação de solidariedade com França após o brutal atentado de "Charlie Hebdo" são só confirmações do que se revelou abertamente em Abidjan.


II. O REATAMENTO DA COOPERAÇÃO JUDICIAL MARCA UMA VERDADEIRA "RECONCILIAÇÃO"?

A 31 de janeiro de 2015, quase um ano depois da rutura, foi anunciado o restabelecimento da cooperação judicial entre ambos os países depois de dos respetivos ministros da Justiça terem anunciado a sua intenção de modificar o convénio internacional de cooperação vigente neste momento. Ao escrever estas linhas não foi ainda publicado o texto desta proposta de modificação que, evidentemente, não está em vigor.
Um dia depois, a de 1 fevereiro, Radio France International anunciava que sexta-feira dia 30 de janeiro, pela tarde, Mohamed VI tinha chegado a Paris em "visita privada" e que poderia ter um "encontro informal" com Hollande nesse fim-de-semana. O facto é que no fim-de-semana de 31 de janeiro/1 de fevereiro não houve encontro entre ambos. Igualmente não houve encontro durante a semana de 2 de fevereiro nem tampouco no fim-de-semana de 7-8 de fevereiro.
Finalmente, a página da presidência francesa anunciou um encontro para segunda-feira 9 de fevereiro.

Pois bem, várias circunstâncias projetam algumas sombras sobre este encontro.

Primeiro.
É evidente que Hollande NÃO QUIZ receber Mohamed VI estes dois fins-de-semana.
Uma leitura da agenda do presidentefrancês revela que sábado dia 17 de janeiro ou domingo 25 de janeiro Hollande incluiu atividades na sua agenda.
No entanto, nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro, e 7 e 8 de fevereiro, não havia NENHUMA atividade na agenda do presidente Hollande pelo que, se tivesse querido, o teria recebido.

Segundo.
A audiência concedida por Hollande a Mohamed VI é UMA das TRÊS que tem marcadas para segunda-feira 9 de fevereiro: às 12h00 com Pierre PRINGUET, presidente da associação francesa de empresas privadas, às 15h30 com Jean-Michel BAYLET, Presidente do Partido Radical de Esquerda, e às 17h00 com Mohamed VI.

Não parece que estas circunstâncias permitam falar precisamente de uma "efusiva" "reconciliação".


III. FRANÇA HUMILHA MOHAMED VI NO DIA EM QUE HOLLANDE O RECEBE

Mas o pior estava para chegar na véspera da reunião. Já no dia 04 de fevereiro o diário informativo digital do Makhzen havia divulgado que dois importantes jornalistas franceses (Gérard Davet e Fabrice Lhomme) do jornal "Le Monde" haviam enviado cartas a três pessoas: Munir Mayidi (secretário pessoal de Mohamed VI e gestor dos seus assuntos financeiros), Moulay Hicham (irmão mais novo de Mohamed VI) e Lalla Meryem (irmã mais velha de Mohamed VI).

Nessas cartas os jornalistas do ‘Le Monde’ questionavam os seus interlocutores sobre uma série de contas no Banco HSBC em Genebra (Suíça) para confirmar a informação de que dispunham e sobre a qual anunciavam a publicação de um artigo para breve.

Fica claro que a intenção do "Le Monde" de publicar de forma eminente um artigo sobre a fortuna da família real marroquina em contas suíças não era segredo. O que significa que é altamente provável (para não dizer, absolutamente seguro) que Mohamed VI tenha pedido a Hollande que essa publicação, se não censurada, pelo menos fosse objeto de adiamento. O facto do "Le Monde" ter anunciado na noite de domingo 8 de fevereiro, quando já se conhecia oficialmente que Hollande iria receber Mohamed VI na segunda-feira 9 de fevereiro, que vai publicar essa matéria na sua edição desse mesmo 9 de fevereiro é, SEM DÚVIDA ALGUMA, uma "mensagem" clara.

Se tivermos em conta que é um costume inveterado marroquino culpar os governos ocidentais (especialmente de França e de Espanha) pelas notícias críticas em relação ao regime alauita pelos meios de comunicação dos respetivos países, é evidente que (seja ou não seja assim na realidade) para o Makhzen esta publicação é responsabilidade do presidente Hollande.

Hollande, desta forma, humilha a 9 de fevereiro de 2015 o mesmo Mohamed VI que se atreveu a desafiar a França na capital da Costa do Marfim a 24 de fevereiro de 2014.
Se Mohamed VI vai à audiência marcada, terá que "engolir" o artigo do "Le Monde" estabelecendo um GRAVÍSSIMO PRECEDENTE que poderá ser repetido, sem ter que ir mais longe, em Espanha.
Se Mohamed VI cancela a audiência (alegando, por exemplo, que "adoeceu") tornar-se-á ele próprio responsável de que a suposta "reconciliação" franco-marroquina se frustrou.

Hollande, assim, infligiu a Mohamed VI a maior humilhação sofrida depois da Espanha ter recuperado a ilhota de Perejil ocupada por Marrocos em julho de 2002.

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