terça-feira, 10 de abril de 2018

Sim, há um feminismo saharaui!



Lehdía Mohamed Dafa, uma médica saharaui a viver em Espanha, escreveu no seu blogue uma reflexão sobre os difíceis caminhos do feminismo, também no Sahara Ocidental.

“O futuro é amanhã e vejo-o com otimismo”.
“Há uns anos questionava a existência de um feminismo saharaui. Afirmei, em mais de uma ocasião, que as mudanças e conquistas conseguidas na situação da mulher saharaui durante os primeiros anos revolucionários de combate pela libertação e independência se foram gradualmente perdendo até hoje, sem que nada o justificasse”.

“Disse ainda que organizações como a União Nacional de Mulheres Saharauis (UNMS), ou a própria representação da mulher em instituições como o Parlamento ou o Secretariado Nacional, são meras correias de transmissão da política monolítica da Frente POLISARIO, não passando de uma fachada colorida. De nenhum modo são representantes ativas ou porta-vozes dos direitos inalienáveis da mulher saharaui na sua luta pela igualdade e pela melhoria das condições de vida, no contexto da exigência do cumprimento das resoluções da ONU”.

“Os meus argumentos baseiam-se na evidência da realidade. Nestes 40 anos, a UNMS (integrada na Frente) - e esta elite de mulheres que tem ocupado cargos de segundo nível - não tem sido capaz de incorporar nas suas agendas e programas de ação um único projeto - político, legislativo ou social - que tenha como objetivo conseguir a plena igualdade, pelo menos jurídica, para as mulheres. Por isto somos atualmente dos poucos que não tem um código de família ou um estatuto de direitos civis, pelo menos parecido com o de outros países do mundo árabe muçulmano. E embora não haja ainda uma organização que possa ser qualificada como feminista, hoje pode-se dizer com orgulho que existe um feminismo saharaui”.

“Nos últimos anos, e especialmente ao longo de 2017, foram aparecendo nas redes sociais um conjunto de perfis de mulheres saharauis - jovens, livres, rebeldes – que, com diferentes sensibilidades e enquadramentos, têm deixado uma série de comentários e declarações inequivocamente feministas. Têm constituído grupos e trocado entre si informação criando um espaço de encontro e debate, independente e plural. Onde podem, igualmente, encontrar outras mulheres corajosas que jamais aceitarão a submissão e que, com altos e baixos, mostram o seu forte compromisso para com a luta pela igualdade, pelas oportunidades e por maiores quotas de poder para as mulheres”.
“Jovens como Mena Souilem, Lehdía Albarbuchi, Najla Mohamed, Emgaili Jatri, Minetu Errer, Hurria Salama, Tfarrah, Aichatu, Asria Mohamed, entre outras, e páginas como ‘Desmontando tabus’ (em espanhol), ‘Para uma consciência feminista iluminadora’ (em árabe) ou as recentemente celebradas primeiras jornadas de ‘Feminismos Saharauis’ em Saragoça, são exemplos indicativos de um movimento que se libertou de inibições e está a desconstruir o velho discurso oficial que, ao longo destes anos, havia monopolizado e transmitido uma imagem idílica da mulher saharaui, que nada tem a ver com a crua e dura realidade”.

“Estas jovens ativistas são um exemplo de coragem, conhecimento, experiência e sentido de comunidade. Reivindicam que a nossa luta pela igualdade não pode ficar subordinada nem esperar pela realização da independência e soberania nacional. Sem medos nem complexos, têm reforçado a ideia de que os direitos que exigimos não são um luxo, nem meros caprichos. São direitos humanos universais, necessários para viver com dignidade.

“O rastilho foi aceso e serão cada vez mais as mulheres saharauis a exigir uma legislação que impeça a discriminação da mulher, que ponha preto no branco os nossos direitos que hoje permanecem no limbo e que garanta a sua proteção e livre exercício. As mulheres saharauis nunca fizeram da vitimização uma bandeira de luta mas muitas estão já cansadas de continuar na prisão dourada de um relato épico e heróico que já passou à História”.

“Hoje têm problemas urgentes como a falta de autonomia económica, o casamento precoce como única saída viável, a dependência da autoridade masculina, a ausência de uma legislação que regule o direito ao divórcio, a tutela dos filhos, a definição de maioridade, a idade mínima para contrair matrimónio, a herança, a continuação de uma educação básica, secundária ou universitária sem pressões para o abandono escolar, uma legislação e um mecanismo que permita aceder a uma vida sexual e reprodutiva saudável”.

“Temos consciência de que a nossa luta não é fácil, como também não o foi nenhuma luta feminista no mundo. Não nos podemos esquecer que somos parte de um conflito complexo onde a maioria das mulheres, que sacrificam a sua vida pela sobrevivência e cuidado das crianças e idosos, nunca ouviram sequer a palavra feminismo.

“Mas também sabemos que a nossa sociedade - no exílio, nos territórios ocupados e na diáspora - está a sofrer uma acelerada e profunda transformação que podemos aproveitar como uma janela de oportunidade para continuar a avançar para uma mudança a favor dos nossos direitos, da igualdade e de melhores condições de vida”.

“A nossa luta não deveria perder de vista dois eixos fundamentais. O primeiro é a educação o mais completa possível para as raparigas, enquanto pilar básico e garantia da sua capacidade de se apropriarem das suas decisões e das suas vidas, para alargar o horizonte das suas oportunidades e para desenvolver as suas próprias ideias. O segundo é manter um firme e irrenunciável compromisso com a paz e a solução negociada de um conflito político do qual somos as principais vítimas.

“Apoiadas na Resolução 1325 das Nações Unidas, devemo-nos construir e reconhecer enquanto sujeito político e exigir a participação direta e ativa, segundo uma perspetiva de género, em todos os processos de negociação ou em qualquer tipo de iniciativa pela paz, segurança ou desenvolvimento da região.

“A nossa luta pela igualdade da mulher é o melhor investimento na construção de uma sociedade saharaui democrática, moderna e mais justa; que, em definitivo, só será possível com a plena e ativa integração das suas mulheres em todos os âmbitos da vida social, económica e política.”











A autora do artigo, a médica Lehdía Mohamed Dafa

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